Bandidos invadiram terreiro, roubaram e agrediram religiosos: ‘Oxóssi chorou’

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“Eles colocaram as armas nas cabeças dos orixás”. Foi com essa frase, falando com os olhos marejados e com a marca da violência no rosto que o babalorixá Rychelmy Imbiriba contou ao CORREIO como foram os minutos de terror que ele e mais 150 pessoas passaram na noite de sábado (12).

O machucado na face, fruto de uma coronhada, não foi nada comparado à dor que o pai de santo sentiu com o desrespeito ao sagrado, ao culto do candomblé e aos orixás que ali se encontravam no Terreiro Ilê Axé Ojisé Olodumare, conhecido como Casa do Mensageiro.

Na noite destinada ao pai dos orixás, Oxalá, no primeiro festejo do ano, seis homens, pelo menos dois deles armados, invadiram o local, que fica na localidade de Barra do Pojuca, em Camaçari, Região Metropolitana de Salvador, no meio da cerimônia e a transformaram em um cenário de violência, pânico e choro.

Eles entraram no templo pela porta principal, foram para o salão em que a festa estava acontecendo e deram ordem de assalto. Algumas pessoas, pouco mais de 20, conseguiram fugir para os fundos do terreno, lugar em que passa o Rio Pojuca.

O babalorixá Rychelmy Imbiriba levou uma coronhada no rosto (Foto: Almiro Lopes/CORREIO)

Choro de orixá
Durante a ação, os bandidos ordenaram que todos deitassem no chão, o que, obviamente, não foi cumprido pelas pessoas que estavam incorporadas com os orixás. Após levar o celular dos adeptos que estavam deitados, os homens começaram a revistar os orixás e chegaram a chacoalhá-los e apontar armas em suas cabeças, em uma tentativa frustrada de fazer com que eles deitassem ao chão e acordassem. Após a ação, Oxóssi chorou.

Dentre as falas dos bandidos, que deixaram os presentes revoltados, estavam: “Vamos bater nesses macumbeiros”; “Vocês nem deveriam praticar essa macumba aqui”; “Isso não existe, manda ele (orixá) parar”, dentre outros.

Os xingamentos e atos para profanar a fé dos membros do terreiro foram realizados durante toda a ação criminosa.

A coronhada que o babalorixá Rychelmy recebeu foi justamente por tentar impedir a truculência dos homens contra os orixás. “Eu vi o movimento. Nós contamos seis homens, alguns encapuzados, uns sem capuz. Quando eu percebi, fui até lá fora para tentar acalmar os meus e entender o que estava acontecendo. Foi aí que eu recebi a coronhada e começou a jorrar sangue. Fui tentar dizer que não precisava de nada daquilo, que eles podiam levar o que eles quisessem, mas que não mexessem em quem tivesse com o orixá, e foi aí que eu levei a coronhada”, contou o pai de santo, contendo as lágrimas.

Na saída, os homens conseguiram levar um carro e acabaram batendo em outros veículos que estavam no local. “Eles levaram inúmeros celulares, um carro, a câmera de um fotógrafo que estava aqui que acabou levando uma coronhada e três pontos na cabeça também, e alianças das pessoas”, narrou o babalorixá.

“Eu estava esperando qualquer movimento pior para poder reagir. Eu teria morrido, teria brigado porque é tudo aquilo que eu acredito, a minha ancestralidade que é forte. E eu sei que isso é uma coisa que já vem desde a escravidão. Essa perseguição não é de hoje. Nesses momentos, você fica em desespero e pronto para qualquer coisa. Ali é o nosso sagrado e você mexer no sagrado do outro…”, comentou Rychelmy.

Filhos de santo
Enquanto, de sua imponente cadeira esculpida em madeira, o pai de santo falava com o CORREIO, os iaôs e demais membros do terreiro sentavam ao chão para lembrar a história e adicionar seus depoimentos. As lágrimas, que tanto tentavam segurar, ousavam em cair. A violência não foi só física; também foi emocional e atingiu a ancestralidade daqueles que ali estavam.

Foto: Almiro Lopes/CORREIO

Quem estava incorporado no momento, de nada lembra. Os iaôs Laís Monteiro, Thamires Vitória e Rychardson Biriba foram alguns deles. Thamires relata que, quando acordou, sentiu um desespero, que ela não entendia de onde vinha. “Ele continua até agora. Na hora que eu acordei, não sabia por que estava assim. Só consegui ver o meu pai (o babalorixá Rychelmy) sangrando”, contou a iaô.

Para tentar mensurar sua dor e desespero, a iaô Amana Verena contou que durante seis anos estudou em um colégio municipal em que sofria preconceitos, diariamente, por conta de sua religião e de sua cor.

“Eu sofria todos os dias. Eles me batiam, falavam mal de mim e de minha religião. Mas esse sofrimento não foi tão grande quanto o que eu senti com essa invasão”, contou chorando.

A também iaô, Daisy Santos, reiterou a intolerância dos criminosos.

“Eles (assaltantes) falaram que aqui não deveria ter essa religião, que somos todos do demônio. Tentaram pegar até mesmo o celular das pessoas que estavam com orixás. A gente fica com uma consternação de saber que mesmo estando no seu espaço sagrado, que você não tem segurança e nem encontra apoio da comunidade local”, observou Daisy.

A iaô Muana Simões foi outra que detalhou a ousadia e desrespeito dos invasores.

“Os bandidos chegaram a levantar as roupas de quem estava incorporado para ver se tinha celular. A gente avisava que eles estavam incorporados, mas eles continuavam e diziam que a gente nem deveria estar ali”, contou.

Saída pela mata
Já a ekedi Ana Conceição foi responsável por levar mais de 15 pessoas para os fundos do terreno em que o terreiro fica, onde está o Rio Pojuca e uma mata da Reserva de Sapiranga. “Nós fomos para o mato e nos escondemos. Como a roupa de todo mundo era branca, estava refletindo a luz da lua. Alguns tiveram que tirar a blusa e outros deitaram completamente no chão”, contou ela.

Terreiro fica ao lado de mata e do Rio Pojuca (Foto: Almiro Lopes/CORREIO)

Os momentos de terror se intensificaram quando um dos criminosos foi atrás.

“Em algum momento um deles chegou a vir conferir se tinha alguém e foi quando eu pedi que todos ficassem em silêncio. Eu estava com uma criança pequena, que também tive que tentar acalmar para que não chorasse”, lembra Ana.

Como fica
Apesar do culto a Oxalá ser o primeiro do ano, ele é o último do ciclo do candomblé. Agora, o terreiro irá parar suas atividades e só retornar em março, quando a primeira festa de um novo ciclo é realizada, a de Exu.

O Terreiro Ilê Axé Ojisé Olodumare tem 15 anos de história, mas está no local há quatro anos. Neste tempo, a casa nunca sofreu atos de intolerância religiosa, mas os integrantes relatam que sempre sofrem preconceito ao andar pela localidade.

Além da dor física, a insegurança de voltar a fazer festas no templo é grande. “A localidade é pequena, poucas pessoas entram aqui, que é um lugar de difícil acesso e com bastante mata em volta. Acredito que esse grande movimento, de carros chegando, pessoas de outros estados e ônibus, por exemplo, possa atrair os olhos desses ladrões como se aqui fosse um local com muito dinheiro durante as festas”, destacou o assogbá Gilmar Sampaio, que fez questão de afirmar que o episódio não abala, de forma alguma, a fé das vítimas.

Em nota de pesar, o terreiro afirma que o ocorrido foi um ato de intolerância religiosa e lembra da perseguição que a religião teve do Estado e da polícia. “Hoje (sábado), durante a cerimônia pública em louvor a Osalá, nossa casa foi invadida por bandidos armados que além de levar os pertences dos presentes (Egbé e convidados) profanaram a nossa fé, desrespeitaram nosso espaço sagrado, o nosso culto e agrediram o fisicamente o Babà Rychelmy Esutobi”, diz o comunicado, publicado nas redes sociais.

“Hoje somos alvo da violência que assola toda a nossa sociedade, acrescida da violência religiosa. Apesar de todo ocorrido estamos bem e continuaremos contritos em nossa fé conforme nossos antepassados nos ensinaram. Pedimos desculpas aos presentes na festa por terem vivido esse momento de aflição em nosso espaço que tanto remete a paz e segurança. Tomaremos as providências cabíveis para que fatos como esse não mais ocorram em nosso Ilê Axé”, acrescenta o terreiro na nota.

Foto: Almiro Lopes/CORREIO

Investigação
O caso foi registrado na Delegacia de Monte Gordo. As investigações estão em curso e o caso é tratada apenas como roubo, não como intolerância. Apesar dos membros do terreiro relatarem que uma viatura do Pelotão de Emprego Tático Operacional (Peto) foi ao local e mostrado fotos dos bandidos, a Polícia Civil afirma não ter indícios de quem são os autores da ação.

No entanto, o babalorixá Rychelmy destacou que, durante a presença dos policiais no local, foram mostradas fotos de criminosos que atuam na região e que alguns deles foram reconhecidos.

Os membros do terreiro irão registrar o caso no Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, da Sepromi, no Ministério Público da Bahia (MP-BA) e entrar em contato com a Prefeitura de Camaçari.

A Secretaria de Desenvolvimento Social e Cidadania (Sedes) de Camaçari afirmou que soube do caso pelo CORREIO, mas que a pasta falaria com o terreiro. “Entrarei em contato colocando à disposição para recebê-los na Sedes”, informou uma representante da Sedes.

Preocupação
Iraildes Andrade, coordenadora geral do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e ekedi da Casa de Oxumarê, afirmou que está “sensibilizada e preocupada com essa questão”. “Infelizmente, hoje vamos ter que ter muito cuidado. Essa é a conversa que venho tendo aqui em casa (de Oxumarê). Temos que ter cuidado com esses ataques que estamos sofrendo. Eu acho que a gente (os terreiros) precisa agora se fortalecer muito e ter muito cuidado, porque viveremos tempos muito difíceis”, disse.

“As pessoas estão achando que podem fazer o que querem. Que podem entrar e apedrejar os terreiros. A gente vai precisar de ter muita conversa, entendimento e paciência e espero que a gente possa contar com os poderes públicos para nos ajudar, porque viveremos tempos difíceis. Nós nos sensibilizamos e estamos ao lado do Babá Rychelmy. Agora, vamos ter que nos preocupar com a segurança das casas, porque elas estão sendo invadidas. Isso é muito sério”, destacou.

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