Cerrado, savana e a invenção da natureza

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Em 2011, circulou em um grupo de e-mails de ambientalistas do qual eu fazia parte uma notícia veiculada na Folha de S. Paulo cujo título me intrigou: “Moçambique oferece terra à soja brasileira”. Lembro que enviei uma mensagem aos colegas perguntando se alguém tinha mais informações do que aquelas contidas nas poucas linhas publicadas pelo jornal, mas ninguém ouvira falar do projeto cujo nome a Folha de S. Paulo resumiu como ProSAVANA, o Programa de Cooperação Tripartida para o Desenvolvimento

Agrícola da Savana Tropical em Moçambique.

Quase dez anos depois, foi a essa experiência de cooperação internacional que me dediquei em meu trabalho de tese de doutorado, defendido no ano passado junto ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFRGS. Ainda que diversos temas tenham surgido ao longo do percurso, a investigação foi guiada pela curiosidade despertada ainda lá em 2011, quando na notícia já citada li a seguinte afirmação, concedida pelo então presidente da Associação Mato-grossense dos Produtores de Algodão: “Moçambique é um Mato Grosso no meio da África”. Ora, qual a similaridade possível entre lugares separados por todo um oceano?

Atravessei o Atlântico em busca de respostas a essa inquietude. As entrevistas e observações empreendidas, que dão origem ao que podemos chamar de uma etnografia de projeto de desenvolvimento, lançam algumas pistas que me parecem úteis não apenas à interpretação do caso em análise, mas à produção de conhecimento.

Lançado em 2009, o ProSAVANA é fruto de uma parceria entre Brasil, Japão e Moçambique e prevê, em um horizonte de 20 anos, atividades de pesquisa, extensão e transferência de tecnologias no norte moçambicano. Seus projetos compreendem a região conhecida como Corredor de Nacala, que, em seus 14 milhões de hectares, envolve três províncias e numerosos distritos.

O lugar é tradicionalmente ocupado por grupos etnolinguísticos matrilineares emakhuwa, cujos saberes e práticas agrícolas em muito diferem daqueles promovidos no âmbito desta experiência de cooperação.

A despeito das diferenças, o projeto se justificava – pelo menos em um primeiro momento – por uma suposta natureza compartilhada: o norte moçambicano e o centro-oeste brasileiro ocupam posição análoga no globo terrestre, entre os paralelos 13ºS e 17ºS. Em minha investigação, observei que tal informação era mobilizada em mapas e relatórios, dando origem inclusive a uma publicação da EMBRAPA (intitulada, justamente, “Paralelos”).

Essas representações do espaço por meio de discursos e artefatos foram mobilizadas a fim de produzir a similaridade necessária entre as duas regiões, argumentando que teriam em comum biomas, regime de chuvas e, potencialmente, também índices de produtividade agrícola. A referência estava no cerrado brasileiro, que na década de 1970 experimentou processo de “modernização da agricultura” similar ao que agora se buscava obter na savana moçambicana. Nesse sentido, a própria notícia da Folha trazia uma fala reveladora do então ministro da Agricultura do país africano: “Os agricultores brasileiros têm experiência acumulada que é muito bem-vinda. Queremos repetir em Moçambique o que eles fizeram no cerrado 30 anos atrás”.

Essa linha argumentativa nos permite pensar sobre os limites de uma lógica desenvolvimentista baseada em modelos determinados, como se o mundo devesse experimentar de forma linear o progresso técnico. Nessa interpretação, é evidente que lugares similares podem ser desenvolvidos da mesma forma – daí que Moçambique seria “um Mato Grosso”, à espera da tecnologia e do conhecimento “adequados”.

Com a chegada de cientistas e investidores estrangeiros, as comunidades camponesas do Corredor de Nacala viram ampliar a fragilidade de seu direito à terra, que passava a ser vista como uma nova fronteira agrícola do agronegócio voltado à produção de commodities.

Assim, a mapira daria lugar à soja, e as enxadas de cabo curto, ao maquinário de última geração. Desse cenário eclodem questões complexas e que encontram eco em estudos contemporâneos como aqueles que se dedicam à usurpação de terras (land grabbing), às resistências camponesas, à financeirização da agricultura e mesmo às relações intrincadas entre Estados em programas de cooperação.

Mas, mais do que isso, penso ser relevante para o atual contexto acrescentar outra camada interpretativa sobre a qual pude me debruçar com maior afinco em meu trabalho de tese. O caso do ProSAVANA lança luzes sobre o poder da ciência de não apenas descrever mundos, mas também de os construir: para que projetos de desenvolvimento possam existir, é preciso inventar a natureza.

E essa circunscrição da natureza se faz por meio de categorias descritivas e modelos representacionais amplamente reproduzidos como se fossem algo dado: paralelos e meridianos são linhas imaginadas e imaginárias, mas que produzem efeitos materiais no mundo, permitindo, por exemplo, que savanas africanas se tornem o cerrado brasileiro.

O que quero sugerir aqui é que assumir a ciência como uma produção não a torna dispensável nem sugere que ela possua interesses perversos a priori. Na esteira do que autoras feministas como Donna Haraway sugerem, atentar para o caráter situado do conhecimento é justamente o que permite sua objetividade. Que a ciência não é inócua, já sabemos, haja vista os efeitos de seus produtos.

Observar a localização da construção do conhecimento sugere, ainda, uma postura hesitante diante da possibilidade de que conceitos funcionem como abstrações universalizáveis e enclausurantes: dadas as múltiplas possibilidades de se compor e habitar o(s) mundo(s), há sempre algo que escapa. A experiência do ProSAVANA permitiu experimentar a ideia de que isso vale para o desenvolvimento e também para a natureza.

(*) Ângela Camana é doutora em Sociologia pela UFRGS, pesquisadora colaboradora junto ao grupo de pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (TEMAS) e integrante do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental (GPJA),

CREDITO: CAMPO GRANDE NEWS

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