A solução suíça para irrigar terras semiáridas que desafia a gravidade

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Adjacente a uma parede rochosa, uma série de canais de madeira desgastados conduziu nosso grupo de caminhada por penhascos a uma altitude de 1.200 m.

Somente graças aos corrimões e às redes de segurança montadas fomos capazes de percorrer a trilha de 6 km de extensão — conhecida como Torrent Neuf.

Os agricultores e vinicultores do século 15 do Vale do Rhône que ousaram construir estes canais de irrigação suspensos não tinham nada além de uma pá, picareta e cordas gastas.

Foi um trabalho perigoso que custou vidas — mas salvou uma pequena região da Suíça da quase seca.

A Suíça pode ser chamada de “caixa d’água da Europa”, mas uma região no sudoeste do país, Valais, sofreu historicamente com uma aridez exacerbada pelo foehn, um vento notoriamente quente e seco encontrado aqui.

Fazendo fronteira com a Itália ao sul e a França a oeste, a região em forma de L se estende do poderoso Matterhorn ao Lago Genebra.

Os solos aluviais das encostas mais baixas do Valais são atapetados com pomares de frutas, onde cerca de 70 variedades de damascos amadurecem nos verões mediterrâneos da região.

Enquanto isso, nas pastagens alpinas do alto Valais de língua alemã, é possível ouvir os sinos de animais nativos, como as ovelhas Valais Blacknose e os gados Herens, na sombra dos Alpes.

Esses mesmos picos de mais de 4 mil metros protegem os vinhedos plantados em socalcos (técnica de cultivo em degraus) do Valais, tingindo de verde as dramáticas encostas voltadas para sudeste do Vale do Rhône.

Este é o coração da indústria de vinhos requintados da Suíça, onde variedades endêmicas, como Amigne e Goron de Bovernier, colocaram safras suíças no mapa mundial.

Apesar de ser cercada por algumas das montanhas mais úmidas do país, a região chamuscada pelo sol e esculpida por geleiras recebe apenas 500 mm de chuva por ano, apresentando um desafio de engenharia único para a irrigação.

Canais de irrigação que desafiam a gravidade, conhecidos como bisses, foram projetados para desviar a água do degelo glacial de riachos de montanha para pastagens e vinhedos em altitudes mais baixas.

Até hoje, 200 deles, totalizando 1,8 mil km de extensão, fornecem água para 80% da área irrigada do Valais.

Medindo entre 0,5 m e 2 m de largura, o mais primitivo dos bisses do Valais foi talhado na rocha. Outros, como o Bisse des Sarrasins, de 500 anos, no distrito de Sierre, no centro de Valais, foram escavados em troncos de árvores.

Mas as verdadeiras maravilhas da engenharia foram os “canais suspensos”, projetados para guiar a água de geleiras distantes ao redor de desfiladeiros nos recantos mais selvagens da região.

Localizados a 1,2 mil m acima da margem leste do rio Morge em Savièse (uma sub-região de Valais Central), os canais suspensos de Torrent Neuf, do século 15, foram construídos especificamente para capturar o leite glacial antes que caísse em um desfiladeiro.

Usando lariços derrubados da Foret du Ban du Torrent, os trabalhadores criaram uma série de conduítes de madeira de três lados que poderiam proteger contra avalanches e quedas de pedras.

Em uma verdadeira apresentação de corda bamba, os homens se penduravam nas pontas das cordas, ancorando esses canais suspensos aos penhascos de calcário, com uma fileira dupla de vigas de madeira chamadas boutzets.

Depois de regar o planalto sedento de Savièse por cinco séculos, os canais suspensos de Torrent Neuf foram aposentados em 1935.

Responsável por encabeçar a idade de ouro dos bisses em 1400 graças ao seu sucesso na irrigação de terras improdutivas, o canal do Torrent Neuf foi restaurado em 2013 como parte do patrimônio cultural.

Nos vales mais baixos do Valais, os bisses eram talhados em terra.

Os detritos da escavação reforçaram as margens externas do canal, como no segmento florestal rio abaixo de Torrent Neuf, conhecido como Bisse de Ste Marguerite, alimentado pela geleira Tsanfleuron. Moradores de Savièse, como Lydwine Bruchez, continuam a obter água dele.

A agricultora cria cavalos, gados Herens e um rebanho de 120 ovelhas Suffolk em seus 60 hectares de terra.

“Graças aos bisses, nós [agricultores] temos forragem para nossos animais. É uma questão de sobrevivência para a agricultura do Valais”, diz Bruchez.

“Água é vida, simples assim.”

O Valais, que se estende do Lago Genebra ao Matterhorn, é a região mais seca do país — Foto: Sbosserty/Getty Images/BBC

Em um dia quente e abafado de maio, eu assisti incrédula quando Bruchez ergueu ao ar uma placa de ferro de 5 kg (uma herança de família) no ar, antes de mergulhá-la em um pequeno canal de água que corria pelo seu campo repleto de flores.

A ação — baseada em uma prática antiga conhecida como “zetti” — desvia a água temporariamente para inundar as terras dos agricultores pelo escoamento.

Minutos antes, Bruchez havia levantado a comporta de um pequeno bisse localizado a apenas 100 metros de distância para criar o canal de água artificial.

Normalmente, os únicos portadores das chaves dessas pequenas comportas manuais são os guardas do canal, como Philippe Emery, cujas responsabilidades incluem a manutenção e limpeza do bisse, além de coordenara distribuição de sua água.

Ele é o zelador do Bisse de Lentine de Savièse — localizado acima da capital medieval de Valais, Sion — há 13 anos.

Cercado por um muro de contenção de pedra, o Bisse de Lentine tem 4 km de comprimento, sendo marginado por um caminho de vinhedos, que se estende ao longo da margem norte do rio Rhône.

A visão de um escorpião passando é uma pista do clima semi-árido de Valais, onde seis espécies de cactos prosperam, ao lado de figos e cobras.

“Encontrei uma víbora de 2 m de comprimento espreitando aqui uma vez”, conta Emery, cuidadosamente agachado sobre o bisse para remover a placa de metal que aumenta o nível da água.

Destravando a comporta, ele redirecionou a água do bisse para um barril de metal de 200 litros próximo.

Conhecido como o 'Rei dos Bisses', o Bisse d'Ayent é homenageado na nota de 100 francos suíços — Foto: Van der Meer Rene/Alamy/BBC
Esses “reservatórios” privados e comunitários são de onde os produtores locais retiram água para seus vinhedos, geralmente começando em maio, quando a chuva diminui, continuando até setembro.

Nenhuma parcela de terra é deixada sem uso pelos incansáveis ​​produtores de vinho da região, que contam com alguns dos vinhedos mais íngremes do mundo.

O proprietário da vizinha Cave L’Orpailleur, Frédéric Dumoulin, cuida de terrenos medindo apenas 1 mil m².

Aderindo de forma improvável a encostas com 30 graus de inclinação, suas videiras Chardonnay crescem a 900 m.

Todas as 20 uvas de Dumoulin (incluindo variedades indígenas, como Petite Arvine) são nutridas pelo Clavau — um bisse construído em 1453 pelo Bispo de Sion.

Graças às suas vistas alpinas cobertas de neve e ao acesso direto aos guérites (bares de vinho), o Bisse de Clavau também serve como uma trilha de caminhada bastante frequentada.

É um de uma série de passeios por bisses misericordiosamente planos na região que provaram ser uma bênção para o turismo regional.

Começando na vila de St-Romain, o caminho de 8 km de Bisse de Clavau serpenteia vinhedos vertiginosos que descem até o rio Rhône — uma faixa turquesa cintilante ladeada por encostas verde-esmeralda.

Eu segui o som do zumbido de abelhas e do borbulhar da água que fluía alternadamente pelos canais de concreto ao ar livre do bisse, túneis de pedra e conduítes de metal.

Uma pessoa que sabe mais do que ninguém sobre os antigos cursos de água da região é o veterano Jean-Charles Bornet.

Criado nas dobras do vale ensolarado de Nendaz — que abriga a maior rede de bisses do Valais —, o conselheiro local guarda boas lembranças do Bisse Vieux.

“Me lembro de subir aqui quando era menino com uma enorme mochila de piquenique que pesava mais do que eu”, conta Bornet, enquanto seguimos os contornos dos canais sob a sombra de abetos.

“É onde passei muitos fins de semana, e ainda passo.”

Documentado pela primeira vez em 1640, o Bisse Vieux de 1,6 mil m de altura é o único que transporta água durante todo o ano, proveniente da geleira Grand Désert dos Alpes Peninos.

A placa de ferro de 5 kg que Lydwine Bruchez usa para desviar o fluxo de água é uma herança de família — Foto: Sarah Freeman/BBC

É também um exemplo clássico de como essa tecnologia de irrigação indígena foi adaptada para terrenos desafiadores.

No meio do caminho ao longo de seu curso de 7 km, a água desce em cascata por uma série de calhas de metal escalonadas, que mergulham 5 m para percorrer um cume rochoso.

Em um trecho mais plano, Bornet aponta para os restos de uma enorme pedra na margem do bisse, fragmentada por dinamite.

“Este foi o trabalho de um agricultor local de damasco que por acaso tinha uma licença de dinamite”, diz ele, explicando que as rochas que se soltam pelo derretimento da neve e detritos naturais, como galhos, podem muitas vezes obstruir o bisse, exigindo algum tipo de intervenção “explosiva”.

Atravessando várias bacias hidrográficas, bisses mais longos como o da vila de Saxon — de 26 quilômetros — eram um alvo fácil para os ladrões de água no século 14.

A solução? Um martelo de alerta movido a água, erguido por uma roda de pás a cada curva, que funciona ainda hoje.

Os bisses desviam a água do degelo glacial de riachos da montanha para pastagens e vinhedos em altitudes mais baixas — Foto: Sarah Freeman/BBC

Os guardas passavam a noite em cabines de madeira ao lado deles, prontos para dar o bote se o martelo silenciasse, o que também poderia indicar um bloqueio no bisse rio acima.

“Hoje em dia, um guarda pode saber apenas pelo som da água se uma pedra está bloqueando algum trecho ao longo de seu curso”, afirma Bornet, enquanto tira um galho do bisse.

Embora muitos suíços fora do Valais não tenham ouvido falar dos bisses, a nota de 100 francos suíços é adornada com a ilustração de um dos mais espetaculares: o Bisse d’Ayent.

Construído em 1442, sua passagem de canais suspensos adjacentes a um cume rochoso de 1,8 mil m são um feito da engenharia que rendeu a ele o apelido de “Rei dos Bisses”.

“Os bisses são o resultado da engenhosidade e audácia do Valais e do seu povo”, diz Emilie Morard, chefe do Conselho de Turismo de Mercados Europeus do Valais.

“Somos orgulhosos deste conhecimento ancestral.”

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