A TECNOLOGIA IMPULSIONANDO O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA NO POLICIAMENTO OSTENSIVO: ESTÁGIO ATUAL DO USO DE CÂMERAS CORPORAIS PELAS POLÍCIAS MILITARES NO BRASIL

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ROBSON PACHECO MESTRANDO EM DIREITOS HUMANOS /UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar, de forma atualizada, a trajetória do uso de câmeras corporais no policiamento ostensivo, relatando a origem dessa tecnologia no mundo, achegada no Brasil, sua evolução no uso, os resultados dealgumas pesquisas que investigaram as várias dimensões do uso, buscando destacar a adoção das bodycams no Estado da Bahia. A discussão também girará em torno de como esses dispositivos podem impulsionar o princípio da dignidade humana na prática policial, ao promover maior transparência, accountability e respeito aos direitos fundamentais. Para tanto, realizou-se uma revisão de literatura nacional e internacional, complementada por dados oficiais, relatórios e exemplos de aplicações concretas. Ao final, concluiu-se que as câmeras corporais apresentam potencial de reduzir a letalidade policial, inibir abusos e melhorar a confiança social, mas enfrentam desafios operacionais, financeiros e culturais que demandam soluções robustas e políticas públicas duradouras. E acima de tudo, constituem-se em instrumento eficaz de direitos humanos para o policial militar e a sociedade civil, uma vez que seu uso implica o respeito ao princípio constitucional da dignidade humana.

Palavras-chave: Câmeras corporais. Dignidade humana. Policiamento ostensivo. Transparência policial. Bahia.

O mundo assiste uma verdadeira revolução em todos os modos de produção, prestação de serviços e até mesmo nos atendimentos remotos aos clientes com a inserção da tecnologia em todos esses processos. No campo da segurança pública, nada há de diferente. A adoção de tecnologias de monitoramento em atividades de policiamento ostensivo tem se tornado um ponto crucial no debate sobre transparência, accountability e respeito aos direitos humanos. 

Assim sendo, a utilização de câmeras corporais (bodycams) surge como uma das principais inovações, tendo sido incorporada em diversos países a partir de experiências que buscavam coibir abusos, registrar provas de ocorrências e aumentar a confiabilidade das ações policiais. Dessa forma, o presente artigo busca demonstrar a relação paradigmática da adoção das bodycams e a perspectiva dos direitos humanos, coadunando com a premissa de que, a sua utilização beneficia não somente a sociedade civil, como também os próprios agentes de segurança pública, que realizam o policiamento ostensivo, tomando como referência os casos exitosos e a aplicabilidade na Polícia Militar da Bahia (PMBA). 

Para tanto, é preciso situar quanto a origem das câmeras no mundo, desde suas primeiras aplicações até a sua adoção no policiamento; a introdução das câmeras corporais no Brasil, destacando as iniciativas pioneiras; a evolução histórica e os fatores que impulsionaram ou dificultaram a implementação em diferentes estados; alguns resultados de pesquisas realizadas em território nacional, bem como aexperiência do Estado da Bahia, com seus projetos-piloto e desafios específicos e, por derradeiro, de suma importância, mostrar que esse recurso tecnológico pode, de fato, impulsionar o princípio da dignidade humana no policiamento ostensivo, contribuindo para maior qualidade das abordagens policiais e menor índice de violência estatal (Tyler, 1990). São essas abordagens que o presente artigo pretende apresentar, mesmo que sucintamente, focando é claro, no uso da bodycams e sua indissociabilidade as práticas dos direitos humanos. 

Historicamente, sabe-se que as primeiras câmeras portáteis surgiram no rastro do desenvolvimento tecnológico das décadas de 1960 e 1970, mas foi a partir dos anos 1990 que se iniciaram discussões sobre seu uso estritamente policial (International Association of Chiefs of Police, 2019).Inicialmente, os Estados Unidos (EUA) popularizaram as dashcams (câmeras em viaturas), especialmente no final dos anos de 1990, para fins de controle e coleta de provas. Contudo, é importante mencionar que, nos anos de 1980, as câmeras móveis começaram a ser utilizadas, principalmente naquele país, a partir do movimento promovido pela Associação de Mães contra Motoristas Bêbados, com o objetivo de produzir provas em abordagens, dispensando o uso do bafômetro. 

Posteriormente, as bodycams ganharam destaque principalmente após casos de violência policial amplamente divulgados pela mídia (Skogan, 2006), com casos de racismo, violência, preconceito e exageros nas ações de policiamento. O seu uso foi expandido, passando a serem utilizadas como uma potencial ferramenta para desvendar crimes ligados ao tráfico de drogas. No Reino Unido, por exemplo, registram-se iniciativas pioneiras na primeira década de 2000, em resposta a denúncias de violência contra minorias e à necessidade de proteger tanto os agentes quanto os cidadãos (Internacional Association of Chiefs of Police, 2019).

No Brasil, a discussão sobre o tema abrange questões de ordem legal, ética e operacional, envolvendo aspectos como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o custo financeiro de aquisição e manutenção dos equipamentos, a resistência cultural dentro das corporações policiais e a necessidade de treinamento e protocolos claros (Brasil, 2018; Silva; Lima, 2021). Ainda assim, estudos preliminares indicam potencial efeito benéfico das câmeras corporais na redução de letalidade policial e na diminuição de reclamações sobre abusos de autoridade (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022).

Isso porque, se parte do pressuposto de que o uso de câmeras corporais pelas Polícias Militares do Brasil é um instrumento tecnológico que pode ainda mais aproximar o policiamento ostensivo do princípio constitucional da dignidade humana. A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, conforme previsto na Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988). Tal princípio assegura que todos os cidadãos sejam respeitados em sua integridade física, moral e psicológica, exigindo que qualquer forma de coação estatal se submeta a parâmetros mínimos de proteção dos direitos fundamentais, seja a do cidadão quanto a, dos seus agentes.

No Brasil, a preocupação com o uso de tecnologias de vigilância no policiamento se concentrou em câmeras fixas de monitoramento urbano. Somente em fins da década de 2000 e início da década de 2010 é que surgiriam os primeiros testes com bodycams (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022), aplicados à segurança pública, com destaque para as forças policiais dos estados de São Paulo e Santa Catarina. O estado de São Paulo foi um dos pioneiros a implantar projetos-piloto em batalhões específicos, com foco na redução de letalidade policial e no aumento da transparência (Rodrigues, 2021). No sul do país, em Santa Catarina, foram realizadas experiências iniciais com resultados positivos na diminuição de reclamações internas de abuso de autoridade. 

Por certo, a evolução do uso das câmeras corporais no país pode ser dividida em três fases (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022; Oliveira, 2020): a. Fase Experimental (início dos anos 2010): projetos de pequena escala, muitas vezes obtendo câmeras por meio de parcerias ou doações; b. Fase de Expansão Controlada (meados dos anos 2010): amplia-se o número de batalhões contemplados, surgem discussões sobre protocolos de uso, armazenamento das imagens e treinamento policial e, por fim c. Fase de Institucionalização Parcial (final dos anos 2010 em diante): estados como São Paulo consolidam a política de uso de câmeras em determinadas unidades, enquanto debates sobre privacidade e custos se intensificam, especialmente em razão da LGPD (Brasil, 2018).

Vê-se, portanto, que o debate sobre uso dessa tecnologia para a prestação de serviços de polícia tem sido comum em todas as organizações de segurança em vários países do mundo. Na Bahia, não poderia ser diferente. Já se verifica o seu uso na 52ª Companhia Independente de Polícia Militar (52ª CIPM), sediada a cidade de Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador (RMS), além de outras agências de segurança pública do Estado, seguindo uma onda mundial para o aumento da qualidade e transparência dos seus serviços. 

Neste diapasão, estar-se a anunciar que a ação de polícia ostensiva acoplada a tecnologia das câmeras corporais precisa ser entendida como um instrumento de promoção da ação policial legítima, de melhoria da imagem institucional e de promoção de direitos humanos para os trabalhadores em segurança pública e do próprio cidadão, que passa a confiar muito mais nas suas polícias, aspectos que serão discutidos mais à frente. 

2 METODOLOGIA

Para alcançar os objetivos propostos, adotou-se uma pesquisa de natureza qualitativa, com as seguintes etapas:

1. Revisão bibliográfica: levantamento de artigos científicos, livros e relatórios nacionais e internacionais sobre o uso de câmeras corporais, seus resultados e desafios (Skogan, 2006; Tyler, 1990; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022).

2. Análise documental: consulta a legislações (Constituição Federal, LGPD), notas técnicas de organizações de segurança pública e notícias oficiais, especialmente relacionadas à experiência na Bahia (Bahia. Secretaria de Segurança Pública, 2022).

3. Observação de dados secundários: verificação de indicadores de letalidade e reclamações contra policiais em relatórios e anuários (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022).

Dessa forma, a metodologia empregada nesse artigo foi um estudo exploratório realizado por meio de uma pesquisa bibliográfica, com métodos, por que não dizer, dedutivo. Diante disso, optou-se por não realizar entrevistas estruturadas nesta fase, dada a disponibilidade de dados já coletados em pesquisas recentes e a incipiente utilização e regulamentação do uso na maioria das polícias militares do Brasil. Entretanto, recomenda-se, para estudos futuros, a aplicação de metodologias mistas (quantitativa e qualitativa) que permitam correlacionar, por exemplo, taxas de letalidade antes e depois da adoção das bodycams em diferentes unidades, bem como em locais cuja incidência de crimes sejam também diversificados..

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Encontrou-de dados históricos referentes a sua implantação, destacando o pioneirismo da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP). Quanto à Polícia Militar da Bahia (PMBA), observou que em 2023, por meio da portaria n. º 086, uma comissão foi designada para tratar das demandas referentes ao programa Nacional de Câmeras Corporais, devendo apresentar um estudo técnico e consequentemente, a elaboração de um Procedimento Operacional Padrão (POP), relativo a guarda, manuseio e utilização da bodycam, disciplinando a sua utilização na atividade-fim da Corporação, ou seja, no policiamento ostensivo fardado. 

O resultado desse estudo foi a instrução normativa n.º PMBA02-IN-03.001, publicada em abril de 2024, aprovando o POP para utilização das bodycams, tendo como órgão elaborador o Comando de Operações Policiais Militares (COPPM). Nela foram descritas as ações necessárias para o uso, gravação e solicitação de imagens por órgãos públicos devidamente ilustrados, com fluxogramas. 

Em paralelo, no mesmo, a SSP institui o processo estratégico de compartilhamento e registro audiovisual das imagens coletadas via câmeras corporais no âmbito do Sistema Estadual de Segurança Pública (SESP). Caberia a Superintendência de Gestão Integrada da Ação Policial, por meio do Escritório de Processos e Projetos, subsidiar na elaboração dos procedimentos operacionais e mapas de processos e respectivas documentações. 

O Estado da Bahia foi instado institucionalmente a integrar e atender as demandas referentes ao Programa Nacional de Câmeras Corporais em organizações de segurança pública proposto pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, órgão integrante do Ministério da Justiça.  Esse programa consistiu numa iniciativa que visou fornecer um conjunto abrangente de ferramentas técnicas, normativas e operacionais às Instiuições de Segurança Pública em nosso país, a fim de promover o uso eficaz e estratégico de câmeras corporais. Para tanto, esse órgão sancionou mediante portaria n.º 648/2024, as diretrizes nacionais, para o seu uso. 

De acordo com a supramencionada portaria, precisamente em seu art. 5º, I, câmara corporal é “[…] o dispositivo portátil que capta registros audiovisuais das interações com o ambiente e com outras pessoas e que se acoplam aos uniformes dos profissionais de segurança pública”. Define ainda, que os profissionais de segurança pública deveriam utilizar o equipamento no atendimento de ocorrências, nas atividades que demandam atuação ostensiva, durante buscas pessoais ou veiculares, nas ações operacionais como, por exemplo, distúrbios civis, reintegrações, manifestações, intervenções prisionais, situações de oposição à atuação policial, no patrulhamento. 

Dentro desse escopo, cumpre destacar a importância dessas agências promoverem a regulamentação e estabelecimento de Procedimento Operacional Padrão (POP) com vistas a utilização desse equipamento, conforme prevê a portaria n.º 648/2024, art.º 8, §1º a §4º,  em estrito cumprimento aos ditames de respeito máximo a dignidade da pessoa humana, quer seja sob a ótica do trabalhador da segurança pública, por prestar um serviço com maior transparência nas suas ações, quer seja sob a ótica do cidadão a quem se destinam os serviços da polícia preventiva, por sentirem-se mais seguros quanto a ação policial, o que foi realizado pela SSP e PMBA, no ano de 2024. 

O uso de câmeras corporais no Estado da Bahia está previsto no Programa de Governo Participativo (PGP) do atual governo, 2023-2026, no capítulo do Desenvolvimento Social e Garantia de Direitos, item VII, Segurança Pública e Prevenção à Violência, subtítulo Enfrentamento à Criminalidade, in verbis

A finalidade precípua é implantar o sistema de monitoramento de câmeras nas áreas urbanas e rurais, nas viaturas e nas fardas corporais dos policiais do estado, visando garantir transparência na ação dos profissionais de segurança pública com eficiência e respeito à legalidade, bem como à proteção dos próprios policiais.

Há que se registrar ainda que esta ação de governo vincula-se aos instrumentos estratégicos da SSP e da própria PMBA, por intermédio dos seus planos estratégicos.  No que diz respeito ao Plano Estratégico da SSP, previsto para os anos 2016 – 2025 percebe-se sua vinculação aos objetivos estratégicos e aos seus fatores críticos, como se pode ver na tabela abaixo.

Tabela 1 – Comparação entre os objetivos estratégicos e os fatores críticos

OBJETIVOS ESTRATÉGICOS E FATORES CRÍTICOS DO PLANESP 2016-2025
• OE 01: Atuar no conjunto de medidas capazde contribuir objetivamente para a redução da criminalidade e o fortalecimento dos vínculos estabelecidos com a Sociedade, defendendo erespeitando os direitos do cidadão.• FC: Identificar, avaliar e propor medidas adequadas de controle para os fenômenos docrime e da violência, em parceria com outrasáreas. 
• OE 02: Ampliar a confiança da Sociedade em relação aos órgãos da Segurança Pública, elevandoa credibilidade de modo a estabelecer uma relaçãosalutar de mútua cooperação.• FC: Disponibilizar à Sociedade informações sobre os atos e ações dos órgãos de Segurança Pública de forma célere e transparente.
• OE 12: Expandir o uso da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) para as diversasáreas da Segurança Pública, tornando comum oseu uso pelo público interno e externo, facilitandoo acesso a informações e dinamizando os serviçosofertados.• FC: Estender o alcance da TIC a todas asunidades de Segurança Pública no territóriobaiano;• FC: Aumentar a interação da Segurança Públicacom os seus usuários.  

Fonte: Elaborada pelo autor.

No que diz respeito ao Plano Estratégico da PMBA, previsto para os anos 2017 – 2025, o uso das câmeras corporais guarda maior pertinência institucional com os seguintes objetivos: fortalecer a imagem institucional, desenvolver, mediante ações educacionais e culturais, competências profissionais em PM, promover a elevação da qualidade dos serviços e das atividades da PMBA, que se vinculam a indicadores que podem revelar a efetividade do seu uso e a melhoria da prestação de serviços à comunidade pela PMBA. 

São indicadores muito caros à PMBA: percepção deimagem institucional: público externo e interno e a valorização profissional. Todos eles submetendo-se a lógica dos direitos humanos na prestação dos serviços de polícia, por conta da necessidade institucional de respeito à dignidade da pessoa humana, quer do trabalhador (a) policial militar, quer do cidadão que recebe os serviços finais da corporação.

​Diante disso, é possível observar que as câmeras corporais podem cumprir um papel fundamental na resolução de conflitos, principalmente nas eventuais disputas de narrativas, como bem exemplifica Lorenzi (2021, p. 24), quando ao discorrer sobre três casos em que o equipamento cumpriu o papel de determinar os fatos que incidiram sobre a abordagem policial envolvendo suposta violência policial, dizendo que:

Em todos os casos, o policial estava equipado com uma câmera portátil, a qual foi instrumental para avaliar sua conduta e permitiu um julgamento sobre sua conformidade com a lei, podendo ajudar a identificar o suspeito como também a condená-lo com base em evidências robustas e inquestionáveis. Isto demonstra essencialmente um único resultado: uma fonte imparcial dos fatos que pode narrar com precisão o ocorrido sem qualquer tipo de influência ou corrupção.

Dessa forma, tem-se que as bodycams configuram-se como uma importante medida para a proteção da atuação do próprio policial, diante da possibilidade de resguardo trazida pelas eventuais imagens e áudios captados. Sendo ainda, garantidos a autenticidade das imagens e a disponibilização das imagens, entendida como a capacidade de acessar e utilizar os dados ou sistemas quando necessário, devidamente preservadas, o que a portaria n.º 648/2024 menciona como cadeia de custódia. 

Em termos de direitos humanos e garantias fundamentais, a Lei nº 7.990 de 27 de dezembro de 2001, conhecida como Estatuto dos Policiais Militares da Bahia, devidamente atualizada, descreve de forma clara que, dentre os valores institucionais, a dignidade do homem é um valor destacado. E prossegue o mesmo diploma legal dizendo que o sentimento de servir a sociedade deve ser traduzido pela vontade de cumprir o dever policial militar e pelo integral devotamento à preservação da ordem pública e à garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Ora, objetivamente o estudo foca no estágio atual do uso das câmeras corporais no policiamento ostensivo por algumas polícias militares do Brasil, notadamente o estado da Bahia, vinculando-o ao princípio constitucional da dignidade, isto é, as câmeras corporais seriam mais um instrumento legal do estado para a promoção dos Direitos Humanos nas ações policiais. Constituir-se-á desta forma o serviço de polícia ostensiva como o garantidor dos direitos fundamentais da sociedade civil atendida pelos agentes de segurança.

É muito presente nas normas da caserna o respeito à dignidade da pessoa humana, tido como preceito ético policial militar, dentro e fora do serviço, devendo ser observado por todos, indistintamente, independentemente de postos ou graduações, serviço administrativo ou operacional, seja o policial militar da ativa ou afastado do serviço por qualquer motivo.

O debate que nos importa e impacta são os resultados de pesquisas já realizadas sobre o tema câmeras corporais nas atividades de polícia. Efetivamente, analisando diversos estudos, eles destacam a importância da percepção da sociedade civil e do policial militar sobre a implantação das câmeras corporais. De pronto, percebe-se a importância do homem no processo de acoplamento da tecnologia a sua atividade, por outro lado o quanto se exalta o respeito ao cidadão durante o uso desses equipamentos. 

Para Chapman (2019) o uso desses equipamentos traz consigo a transparência, tanto reclamada nos dias de hoje quanto a atuação dos agentes policiais. Presume-se a elevação da legitimidade da ação policial, por conta do aumento da civilidade recíproca, cidadão para o policial, bem como do policial para o cidadão. 

Outros benefícios podem advir dessa solução tecnológica, tais como uma maior transparência nas ações policiais, uma qualificada prestação de contas à sociedade, maior subsídio para a resolução de processos administrativos correcionais etc. Além de que, pela obtenção das imagens, poder-se-á obter evidências, a serem usadas na persecução penal. Outro benefício colateral é a possibilidade de treinar os agentes, a partir das imagens obtidas, transformando-as em insumo para treinamento, como faz a PMESP.

Toda e qualquer organização quer aproximar-se do seu público-alvo, por isso a legitimação de sua ação deve ser o primeiro passo institucional. É indiscutível que o uso da tecnologia advém da necessidade de transmitir à sociedade maior confiança e aumentar a legitimidade policial diante da população, ainda tem o condão institucional de ressignificar o papel das forças de segurança enquanto instrumento de afirmação de direitos humanos. Um desafio que vai além das instituições policiais militares, é um desafio para a humanidade.

O contexto do estudo ainda perpassa pela necessidade da aproximação do princípio da dignidade humana aos serviços de polícia ostensiva sem desprezar a percepção do uso das câmeras corporais pelo trabalhador da segurança pública como agente e promotor dos direitos humanos. Há que se entender as suas ações como voltadas para os direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos, assim sendo não soaria estranho que a ele seja também garantido esses mesmos direitos. Há que se registrar que o estudo de Adams e Mastracci (2018) foi o primeiro a situar o profissional da segurança pública no debate sobre as câmeras corporais. 

Entre os estudos sobre o uso das câmeras corporais por agentes da segurança, notadamente o policial militar, achou-se que há uma expectativa de que o equipamento promova uma redução do número de reclamações e do uso da força (Ariel et al., 2015; Braga et al., 2018; Braga et al., 2018b), podendo constituir-se como fator protetivo para o bem-estar do policial. Outros estudos prosseguem dizendo que o uso de tal tecnologia se constitui em possibilidade de aumento do apoio da comunidade a ação policial, o que pode impactar positivamente na satisfação no trabalho e desempenho profissional do servidor (Keaton et al., 2023).

Em estudos focados na percepção dos policiais mais resultados notáveis surgiram. Essa percepção do policial quanto a utilização da câmera também pode ser importante parâmetro nessa avaliação. Autores como Harrison, L’hoiry e Santorso (2022) pontuaram, nesse contexto, as preocupações dos profissionais sobre violações de privacidade e concepções dos aparelhos como mera ferramenta de vigilância.

Tem que se destacar também, a identificação de mecanismos institucionais através dos quais é possível reduzir fatores de riscos para a saúde mental no contexto da implementação desta tecnologia.  Assim, Choi et al. (2024) sugerem que políticas públicas destinadas a promover senso de autonomia, competência e relacionamento entre os profissionais obteriam com sucesso o apoio às câmeras, reduzindo assim fatores de risco de desenvolver algum tipo de doença, o que também foi ressaltado por Sandhu (2019).

Em se tratando de percepção, autores como Todak e Gaub (2020), chegam a afirmar que as câmeras corporais oferecem muitos benefícios, mas, para que esses resultados sejam alcançados, os policiais devem aceitar e utilizar a tecnologia, cabendo a instituição verificar as resistências nos seus mais diversos níveis. Nesta seara, autores como Snyder, Crow e Smykla (2019), dizem que o obstáculo é maior entre os policiais de menor patente, por estarem mais expostos às consequências do uso da tecnologia, isto é, são os mais fiscalizados. 

Adams (2024), numa análise mais consistente a respeito de pontos específicos dessa percepção sobre esses dispositivos, conclui que a aceitação da tecnologia está intimamente associada à percepção do profissional sobre a justiça do monitoramento, afetada pela ativação automática e auditoria com inteligência artificial, muito comuns em todo o mundo.

A consolidação de dados obtidos em São Paulo, Santa Catarina e outros estados sugerem que as bodycams podem cumprir dupla função: prevenir abusos (pela possibilidade de registro) e proteger policiais de alegações infundadas (Silva; Lima, 2021). Em São Paulo, por exemplo, um estudo de caso demonstrou que batalhões com uso contínuo das câmeras apresentaram uma queda expressiva de letalidade policial em comparação aos que ainda não adotavam o recurso (Rodrigues, 2021).

Por outro lado, pesquisadores como Oliveira (2020) alertam para a necessidade de protocolos que assegurem o respeito à privacidade de terceiros, bem como regras claras de armazenamento e descarte das imagens. Ademais, a simples existência da câmera não garante a pacificação de abordagens se não houver treinamento adequado e sanções efetivas para situações de manipulação ou omissão de gravações (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022).

No Estado da Bahia, a experiência com câmeras corporais é relativamente recente e vem sendo conduzida pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA) em parceria com o Comando-Geral da Polícia Militar com base nas orientações da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). Os dados divulgados pela SSP-BA (Bahia, 2022) indicam o passo a passo, sendo eles: 

• Projeto-piloto implantado em batalhões de áreas consideradas de maior risco, visando reduzir letalidade e aumentar a clareza de cada intervenção policial.

• Resultados preliminares mostram queda moderada no uso da força letal, bem como redução de reclamações na Corregedoria.

• Desafios: a expansão para todo o estado requer aquisição de maior número de câmeras, definição de estrutura de tecnologia da informação para armazenar as imagens e treinamento massivo de efetivos.

Embora ainda não existam estudos científicos robustos específicos para a Bahia, as informações iniciais convergem com a tendência nacional de que as bodycams podem favorecer a legitimidade do trabalho policial, desde que associadas a políticas de accountability e respeito à dignidade humana (Lima; Ratton, 2020).

A seguir, apresenta-se a tabela 2, exemplificando como alguns estados brasileiros vêm adotando as câmeras corporais, indicando fases, objetivos e resultados iniciais. 

Tabela 2 – Adoção de Câmeras Corporais em Diferentes Estados Brasileiros

EstadoFase de ImplementaçãoObjetivos PrincipaisResultados Iniciais
São PauloInstitucionalização Parcial– Reduzir letalidade policial 
– Melhorar provas de confrontos
– Diminuição significativa de letalidade 
(até 60% em algumas unidades)
Santa CatarinaExpansão Controlada– Reduzir reclamações por abuso 
– Testar viabilidade financeira
– Queda moderada em denúncias 
Melhora de percepção interna dos policiais
BahiaProjeto-piloto– Diminuir o uso da força letal 
– Aumentar confiança comunitária
– Dados preliminares 
apontam redução discreta em ocorrências letais
Rio de JaneiroFase Experimental (restrita)– Avaliar custo-benefício 
– Mitigar violência em operações específicas
– Sem dados consolidados 
– Resistência interna em alguns batalhões

Fonte: Elaborada pelo autor a partir de Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022), SSP-BA (2022) e dados de estudos de caso (Rodrigues, 2021).

4 CONCLUSÃO

A adoção de câmeras corporais no policiamento ostensivo no Brasil teve um percurso gradativo, refletindo tanto experiências internacionais quanto pressões internas por maior transparência e respeito aos direitos fundamentais. Com base na revisão da literatura e na análise de dados secundários, conclui-se:

1. Origem Internacional: As primeiras iniciativas de uso policial de câmeras portáteis surgiram fortemente nos Estados Unidos e no Reino Unido, com foco em aumentar a accountability e proteger cidadãos e policiais.

2. Introdução no Brasil: Estados como São Paulo e Santa Catarina abriram caminho para projetos-piloto no início da década de 2010, obtendo resultados positivos na redução de letalidade e reclamações.

3. Evolução: Embora algumas unidades já tenham institucionalizado a prática, a expansão geral ainda é limitada, seja por razões orçamentárias, seja por resistência cultural. 

4. Pesquisas: A maior parte dos estudos aponta benefícios como menor número de conflitos armados, melhoria nas provas judiciais e incremento na percepção de justiça, mas ressalta riscos relativos à privacidade e à manipulação de gravações.

5. Bahia: A experiência baiana, ainda em fase piloto, segue a tendência nacional. Dados preliminares indicam queda discreta de letalidade e reclamações, porém há desafios estruturais para a adoção em larga escala.

Em síntese, as câmeras corporais configuram uma tecnologia promissora para impulsionar o princípio da dignidade humana no policiamento ostensivo, ao reforçar mecanismos de controle e oferecer maior segurança jurídica às partes envolvidas. Todavia, seu potencial depende de planejamento operacional articulado com o orçamentário-financeiro do Estado, investimento em formação continuada dos efetivos, criação e implementação de protocolo de atuação ou procedimento operacional padrão com definição de regras claras sobre uso, armazenamento e divulgação das imagens. 

Nesse sentido, cabe aos gestores públicos federal e estadual, quiçá municipais, estes mediante convênio, e as Polícias Militares, cooperarem entre si para uma permanente atualização tecnológica nas práticas policiais, assumindo notadamente o uso das bodycams como ferramenta não apenas como resposta momentânea a crises, mas como política pública duradoura e efetiva na promoção de direitos fundamentais e prestação de conta à sociedade dos serviços de polícia ostensiva.

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