Laura Brito*
Coloquei Encontros e Despedidas para tocar enquanto lia a matéria de João Batista Jr. sobre a viagem que Milton Nascimento fez pelos Estados Unidos a bordo de um motorhome em meados desse ano.
A matéria conta uma série de passagens recentes na vida de Milton Nascimento e uma constante me chamou a atenção: como Batista Jr. registrou várias manifestações de vontade de Milton.Publicidade
Ele conta que, em janeiro desse ano, o cantor mandou avisar à direção da Portela que queria ir à quadra da escola de samba para agradecer a homenagem que receberia da agremiação no desfile do Carnaval do Rio. Ele disse que queria cantar acompanhado da bateria. No caminho para o encontro, ele teria dito ao repórter: “Eu quero sentir a vibração de todos na Portela”. Ao longo do caminho até a quadra, ainda decidiu quais músicas seriam ouvidas no carro.
No dia seguinte, Milton Nascimento, mesmo aposentado dos palcos, faria um show no Viva Rio. Escolheu almoçar com os amigos e componentes da banda em sua casa. Pediu que lhe servissem arroz, feijão e bife.Publicidade
Mesmo com o ritmo avançado com que a saúde de Milton decaía no primeiro semestre desse ano, especialmente no que concerne à capacidade cognitiva, Augusto, seu filho, planejou com o pai uma aventura pelos Estados Unidos. Com autorização do médico do cantor, eles viajaram 4mil km pelas estradas americanas em um motorhome. Milton Nascimento já deixava evidente que não conseguia perceber sutilezas no discurso, mas escolheu todas as músicas que seriam tocadas no percurso, dando destaque para os Beatles, com os álbuns Abbey Road, Yellow Submarine e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, um de seus favoritos.
Por fim, a reportagem conta que Milton Nascimento recebeu o diagnóstico de Demência de Corpos de Levy, um tipo de demência que afeta várias áreas do corpo, inclusive a cognição. Com o avançar dos sintomas, isso significa que, diante das informações do ambiente, ele não será mais capaz de tomar decisões sobre a sua vida civil.
Como advogada que trabalha há muitos anos com famílias que foram desafiadas pela demência, esse relato foi muito tocante. Isso porque, quando falo sobre a perda da capacidade em razão de demência, sempre saliento que a incapacidade não faz desaparecer a autodeterminação de uma pessoa. Só que explicar isso, de forma concreta, é muito difícil.
Mas foi o que fez esse relato sobre o ano de Milton Nascimento. Vale voltar alguns parágrafos para ver como lhe foi permitido manifestar seus desejos e como eles foram respeitados dentro de seus limites. Sua alma musical foi acolhida, sua vontade de estar entre as pessoas, sua emoção diante da homenagem da Portela, até o que queria comer antes de um show.
Isso é autodeterminação na prática: que lhe tenha sido permitido, mesmo com o declínio cognitivo, desejar, conviver, cantar e comer. Foram garantidos seus afetos, sua essência, sua gratidão e sua vontade de viver.
Coloquei Encontros e Despedidas para tocar de novo quando terminei de ler a reportagem. Não tem como não se emocionar.
Os números não mentem – o declínio cognitivo de pessoas idosas é um desafio cada dia mais comum. Na demência, nunca teremos notícias do mundo de lá. Mas podemos fazer desse mundo um lugar melhor para quem está aqui e quer continuar.
A plataforma dessa estação é a vida. A capacidade e a falta dela são só dois lados da mesma viagem.
*Laura Brito é especialista em Direito de Família e das Sucessões; doutora pela USP, professora, palestrante, pesquisadora e autora de livros e artigos na área
“Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornal Hoje em Dia”.
Fonte: Hoje em Dia