Entre o passado e o futuro: os DH como política e o avanço da democracia no Cone Sul
No marco das considerações precedentes ( *36 vide nota de rodapé ) não resta dúvida de que a pergunta formulada sobre a possibilidade de fazer política a partir dos Direitos Humanos sob o Estado de direito e o regime democrático ( *38 vide nota de rodapé ), recebe uma resposta afirmativa. Uma resposta que contradiz a chamada ótica dominante e que mostra como as noções de política ( *38 vide nota de rodapé ), Direitos Humanos e democracia ( *36 vide nota de rodapé ) e Direitos Humanos e democracia ( *36 vide nota de rodapé ) são constestáveis e suscetíveis de interpretações alternativas. Em outras palavras, o fato de que tais vocábulos tenham alcançado, no contexto histórico atual das sociedades do Cone Sul, uma significação comum e intersubjetiva, que se expressa na ótica dominante, não implica que os mesmos tenham um sentido único e unívoco como se pretende. O que se percebe por trás disto é uma perspectiva teórica e metateórica ( visão de mundo, juízos de valor, prioridades e interesses práticos, etc. ) determinada. E é contra ela que aqui se sustenta, a partir de uma perspectiva diferente, que a continuação da luta pelos Direitos Humanos nas situações pós-autoritárias ( *36 vide nota de rodapé ) não só consiste em uma prática social possível, portadora de uma racionalidade política ( *38 vide nota de rodapé ) distinta da convencional, senão que, além disto, trata-se de uma prática necessária para consolidar e aprofundar o processo de democratização ( *36 vide nota de rodapé ) do Estado e da sociedade civil.
No entanto, afirmar que a possibilidade e as potencialidades de um política de Direitos Humanos ( *38 vide nota de rodapé ) não supõe ignorar as sérias dificuldades com as quais se defronta uma ação desta natureza. Basta recordar a respeito o que já foi assinalado a propósito da politização ( *38 vide nota de rodapé ) ambígua da temática e dos problemas concretos que enfrentam os movimentos de Direitos Humanos na presente conjuntura de redemocratização ( *36 vide nota de rodapé ). A tais problemas poder-se-ia acrescentar outros não menos importantes: tenso relacionamento com os atores políticos tradicionais ( especialmente com os partidos políticos – *38 vide nota de rodapé ); dilema constante entre as exigências de ampliar a capacidade mobilizadora e de preservar a autonomia; acentuada diferenciação de posições entre seus componentes como resultado da heterogeneidade organizativa, funcional e regional; necessidade de reestruturar a dimensão organizativa interna dos movimentos ( recrutamento de militantes, substituição do financiamento externo, etc. ) ( *39 vide nota de rodapé ). Há ainda o agravante de que nenhum deste problemas pode ser resolvido em abstrato mas, sim, através de processos concretos de relações de forças simbólicas, travadas contra atores políticos (*38 vide nota de rodapé ) e sociais ( *40 vide nota de rodapé ) poderosos ( governos, Forças Armadas, grupos econômicos dominantes, instituições influentes, etc. ), junto com aliados circunstanciais ( partidos políticos – *38 vide nota de rodapé – , sindicatos – *10 vide nota de rodapé – , outros movimentos sociais – *40 vide nota de rodapé – , etc. ), e que requerem uma formulação de estratégias e táticas diversificadas ( enfrentamento, negociação, aliança, etc. ), em função do tipo de demanda conflitiva levantada e da evolução da conjuntura política global.
A dificuldade maior, no entanto, se situa na própria representação que os movimentos de Direitos Humanos têm acerca do significado político ( *38 vide nota de rodapé ), passado e presente, de sua luta. Pois mal se pode pretender fazer dos Direitos Humanos uma política ( *38 vide nota de rodapé – e para esta direção aponta a vontade das organizações de defesa de manterem-se na cena política – *38 vide nota de rodapé ), quando o discurso que os reivindica persiste em negar-lhes politicidade ( *38 vide nota de rodapé ) e os apresenta sob a forma de enunciados naturalistas, marcando-os profundamente com um moralismo antipolítico ( * 38 vide nota de rodapé ) e antiestatal. Uma representação, portanto, que compartilha premissas com a ótica dominante, apesar de que contra ela se choque constantemente o interesse prático e a lógica subjacente de sua ação. Já foi ressaltado que tal representação autolimitadora do politicum ( *38 vide nota de rodapé ) imanente aos Direitos Humanos, se ajustava às condições de surgimento e de eficácia simbólica da prática de defesa: contra o terror do Estado ( * vide nota de rodapé ), que levava até as últimas consequências a política da “guerra” ( *2 vide nota de rodapé ), só restava às associações ( *10 vide nota de rodapé ) que lutavam por fixar-lhe limites ( *4 vide nota de rodapé ) invocar razões puramente morais, bem como a normatividade jurídica internacional. No entanto, além do sentido imediato que atores e observadores lhe prestaram desde o início. Por um lado, trata-se de um forma de resistência que revela, mais que qualquer outra, tanto a lógica de dominação que estava por trás dos projetos autoritários, de seus impactos transformadores e de suas sequelas, como os limites e contratendências que desencadeavam. Polo de poder social autônomo, nele se condensaram, durante as fases repressivas dos regimes militares, o saber, a ética, o direito e a política ( *38 vide nota de rodapé ) entendida como prática de comunicação normativa ( e não como simples âmbito da força pura e do jogo de interesses ). Impermeável à cultura do medo ( *30 vide nota de rodapé ) e à mentira oficial, sua existência foi mais que uma brecha na sociedade disciplinar que o autoritarismo procurava implantar; era uma interpelação que não só deixava a descoberto o componente totalitário da utopia da nova ordem ( cuja pretensão última era separar a moral da política – *38 vide nota de rodapé – e fazer desta última propriedade exclusiva do poder do Estado ), mas que também desnudava a extrema fragilidade simbólica do ordenamento político ( *38 vide nota de rodapé ) do social baseado em dispositivos fáticos de integração e exclusão. Daí, o impacto aparentemente desproporcional ( em termos de recursos materiais de poder ) que a luta pelos Direitos Humanos produziu sobre os regimes que arrastavam problemas congênitos e insolúveis de legitimação: campanhas maciças de descrédito e de perseguição sobre entidades de defesa, as quais não traduziram em eliminação física, porque contavam com o respaldo decisivo da solidariedade internacional proveniente do mundo ocidental, com quem as ditaduras mantinham laços de dependência.
Por outro lado, a luta pelos Direitos Humanos se erigiu em princípio gerador de práticas e valores democráticos. Em primeiro lugar, pelo motivo evidente de que o respeito e a vigência das liberdades básicas pressupõem, como já foi dito, a garantia institucional do Estado de direito e de um regime de democracia ( *36 vide nota de rodapé ) representativa, que possibilita aos cidadãos participar da eleição e do controle dos governantes. Em segundo lugar, e fundamentalmente, porque estabelece as bases de uma matriz cultural democrática ( *36 vide nota de rodapé ), de uma trama de sentido em grande parte nova nos países em questão. A novidade passa, em parte, pela formação de uma consciência no plano mais capilar do social, de recusa á violência política ( *38 vide nota de rodapé ), de valorização de lutas pacíficas de conflitualidade, de demandas de legalidade, de necessidade de neutralizar as condutas hobesianas do Estado etc. No entanto, a novidade maior é a própria prática de lutar em nome e a partir de valores e desde terrenos que ampliam o espaço do debate público, ultrapassando o campo formal da política. Pois aí reside, apesar da enunciação inadequada, um potencial de significação capaz de sustentar, nos processos de democratização em curso, uma política ( *38 vide nota de rodapé ) de defesa dos direitos específicos consagrados pela lei e, ao mesmo tempo, de promoção de novos direitos individuais e coletivos ainda não reconhecidos.
Assim como as liberdades fundamentais deixam de ser meramente formais a partir do momento que tornam possível e suscitam lutas sociais, as instituições jurídico-políticas ( *38 vide nota de rodapé ) de um regime democrático ( *36 vide nota de rodapé ) não são garantias suficientes da efetividade dos direitos estabelecidos se não estão acompanhadas por uma tomada de consciência e uma ação concreta em defesa dos mesmos por parte de seus beneficiários diretos, sejam estes dos cidadãos em geral, sejam classes, categorias ou grupos particulares. Isto que é válido em geral, o é ainda mais em sociedades onde discriminações de toda índole ( raça, gênero, religião – *13 vide nota de rodapé – , tipo de trabalho – *9 vide nota de rodapé – , etc. ) tornaram as disposições legais letra morta, enquanto o Estado aparece historicamente como principal agente responsável pelas violações de direitos ( * vide nota de rodapé ). Se a isto acrescenta-se que a democratização ( * 36 vide nota de rodapé ) do poder político ( *38 vide nota de rodapé ), além de estar fragilizada pela presença de explosivos elementos de crise econômica e política ( *38 vide nota de rodapé ), não afetou de fato aparelhos decisivos do Estado ( Forças Armadas e de Segurança, Justiça, administração pública, etc. ), parece óbvio que a vigência dos Direitos Humanos ( em sentido restrito e ampliado ) não pode ficar relegada apenas à tutela institucional ou ao jogo monopolista de representação e delegação dos atores políticos ( *38 vide nota de rodapé ) convencionais, que se comportam segundo uma lógica própria de acumulação de recursos de poder no campo estratégico do Estado. Por isto, é no mínimo uma ingenuidade sustentar ( como faz a ótica dominante ) que, por que cessam as violações por motivos políticos ( *38 vide nota de rodapé ) sob a legalidade democrática ( *36 vide nota de rodapé ), a ação dos movimentos ( *40 vide nota de rodapé ) que colocam em debate público situações específicas de direitos ( instituídos ou não ) carece tanto de politicitude ( *38 vide nota de rodapé ) quanto de centralidade para o avanço consolidado da democracia ( *36 vide nota de rodapé ). A mesma ingenuidade, em todo caso, aparece quando os movimentos ( *40 vide nota de rodapé ) de Direitos Humanos tensionados e desiludidos com o funcionamento real das instituições jurídicas e dos atores políticos ( *36 vide nota de rodapé ) convencionais, tendem a fechar-se na camisa-de-força de um moralismo exemplar, sem perceberem que sua ação possível ( pontual e não global, que tem por alvo a opinião pública ), só se torna viável na medida que não ignora, não prescinde nem pretende substituir tais instituições e atores.
Em síntese, a luta pelos Direitos Humanos nos países do Cone sul ( certamente com a exceção do Chile 0 se encontra hoje em uma encruzilhada. A saída do autoritarismo militar e a instalação complexa e precária de regimes democráticos ( *36 vide nota de rodapé ) os obriga, sob pena de ameaçar sua sobrevivência futura como movimentos sociais ( *40 vide nota de rodapé ) autônomos e relevantes, a reconsiderarem sua significação política ( *38 vide nota de rodapé ) passada e presente, colocando em questão tanto o universo de sentido liberal-democrático ( *36 vide nota de rodapé ) dominante, como o moralismo transcendente que eles mesmos tendem reativamente a gerar. Em última análise, trata-se de tomar consciência de dois aspectos inter-relacionados. Primeiro, que o desafio da construção da democracia ( *36 vide nota de rodapé ) nestas sociedades passa pela realização de duas racionalidades políticas ( *38 vide nota de rodapé ) simultâneas, indispensáveis, mas de difícil articulação, já que implicam tensões e contradições inevitáveis em termos de atores, cenários, conteúdos e estilos de ação: por um lado, a criação e o pleno funcionamento dos procedimentos formais do exercício do poder político ( *38 vide nota de rodapé ) instituído e de seu consenso valorativo; por outro lado, formas emergentes de participação social que, ao mesmo tempo em que expressam práticas de dissenso e de politização ( *38 vide nota de rodapé ) de problemas substantivos da vida cotidiana dos cidadãos, são também canais de comunicação e de controle direto da sociedade civil sobre o Estado. Segundo , que uma condição de existência dos movimentos ( *40 vide nota de rodapé ) de Direitos Humanos no contexto atual, é que eles possam se assumir enquanto portadores desta última racionalidade política ( *38 vide nota de rodapé ). Pois este parece ser o único caminho que lhes permite liberarem-se dos condicionamentos autolimitadores de sentido impostos pelo acontecimento traumático de origem – o terror de Estado ( * vide nota de rodapé ) – sem terem de pagar o preço de renunciar ao stock cultural acumulado ao longo de tantos anos de resistência ao autoritarismo. Operar a passagem para a outra política de maneira alguma supõe deixar no esquecimento a memória histórica dos anos sombrios do terror de Estado ( * vide nota de rodapé ). Na realidade, para que esta experiência de horror ( * vide nota de rodapé ) e de medo ( *30 vide nota de rodapé ) “nunca mais” se repita não basta manter viva a recordação coletiva de como, por quem e por que isto aconteceu. É preciso, sobretudo, atualizá-la e recriá-la através de novas lutas pela conquista de direitos de cidadania e contra as discriminações e opressões múltiplas que se conservam e se reproduzem sob os regimes democráticos ( *36 vide nota de rodapé ) nascentes. As situações pós-autoritárias ( *36 vide nota de rodapé ) apresentam, junto a suas limitações e dificuldades de todo tipo, ou talvez por isto, um enorme campo para a imaginação e para a experimentação política, tanto institucional quanto participativa. Diferentemente das sociedades “pós-industriais”, a luta pelos Direitos Humanos nos países do Cone Sul não é reativação de uma velha ideia, mas a irrupção de uma nova ideia-força, plena de potencialidades significativas. Que ela se mantenha e cresça, diversificando-se e transformando-se, parece fundamental para o futuro da própria ideia de democracia ( *36 vide nota de rodapé ). Do contrário, se corre o grave risco de que o tráfico de linguagem logo a faça perder seu sentido inaugural e, juntamente com ele, a aprendizagem ainda frágil de que “a luta política ( *38 vide nota de rodapé ) sempre é também uma luta por definir o que é ‘a política ( *38 vide nota de rodapé )'” ( *41 vide nota de rodapé ).